"Não há nada escondido que não venha a ser revelado, nem oculto que não venha a se tornar conhecido". Lucas, 8:17,12:2 em Mateus10:26

"Corra o juízo como as águas; e a justiça, como ribeiro perene". Amós (570-550 a.c.)

"Ninguém pode ser perfeitamente livre até que todos o sejam".

Santo Agostinho

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Protecionismo ou legítima defesa?

Artigo de Bresser Pereira - publicada na Folha de SP em 24-09-12
O governo americano, em carta enviada por seu representante comercial Tom Kirk ao Ministro das Relações Exteriores, Antônio Patriota, acusou o governo Dilma de estar sendo "protecionista" por haver decidido aumentar tarifas de cem produtos importados pelo Brasil.
E cobrou ("urged") que o governo brasileiro reveja sua decisão. O ministro brasileiro ironizou o americano por ter "reconhecido a legalidade" das medidas brasileiras no quadro da OMC e afirmou que o Brasil foi obrigado a tomar essa iniciativa porque os EUA, com sua política de emissão de dólares ("quantitativeeasing"), vem causando a apreciação do real.
Patriota acusou também os EUA de subsídio à sua agricultura, mas a novidade em termos de discussão tarifária é a de mostrar que tarifas e taxa de câmbio se substituem quando se trata de importação. Esta é uma tese "proibida" na OMC, mas é afinal óbvia.
Se um país eleva em 10% suas tarifas, mas a taxa de câmbio se aprecia em 30%, na prática a indústria foi afinal desprotegida em 23% em relação ao preço inicial em reais.
Façamos as contas, partindo-se de tarifa zero, do preço de um bem de US$ 10, e de uma taxa de câmbio de R$ 2,60 por dólar, implicando um preço em reais de R$ 26,00.
Se for estabelecida uma tarifa de 10%, seu preço em reais será R$ 28,60; mas caso a taxa de câmbio se aprecie em 30%, caindo para US$ 1,82, o preço em reais cairá de R$ 28,60 para R$ 20,00, de forma que, devido à depreciação, a proteção adicional de 10% se transformou em uma desproteção líquida de 23%.
A substituição de tarifa por câmbio e a tese de que nos países em desenvolvimento a taxa de câmbio deixada livre tende a ser cronicamente sobrevalorizada estão no centro da nova escola keynesiano-estruturalista que está surgindo no Brasil.
Quando o ministro Guido Mantega, que faz parte dessa escola, afirmou há alguns anos que o Brasil estava sendo vítima de uma guerra cambial, pensava nestes termos.
É claro que os EUA e o clube dos países ricos não concordam. Porque ideologicamente acreditam que a liberalização comercial geral é do seu interesse.
Na verdade, em relação a países de renda média que são capazes de exportar bens manufaturados, isso não é mais verdade.
Se esses países lograrem neutralizar as duas causas dessa sobrevalorização crônica do câmbio (entradas excessivas de capital, agora agravadas pela política de emissão monetária dos países ricos, e doença holandesa), ganharão mais que os ricos com a abertura comercial.
Foi o que perceberam há muito os países asiáticos dinâmicos, que não se deixaram enganar pela tese do Ocidente de que "precisam" de seus capitais.
É o que nós, brasileiros, já começamos também a entender, mas que não tivemos ainda força suficiente para implementar, seja porque a dependência de nossas elites e principalmente de nossos economistas é muito maior do que a das elites asiáticas, ou porque a doença holandesa é mais grave aqui.
Como não logramos colocar a taxa de câmbio no verdadeiro nível de equilíbrio somos obrigados a aumentar tarifas.
É um "secondbest", mas está claro que o governo brasileiro não se deixará comover com as acusações americanas. O que o Brasil está fazendo é legítima defesa.
Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas, onde ensina economia, teoria política e teoria social. É presidente do Centro de Economia Política e editor da "Revista de Economia Política" desde 2001. Foi ministro da Fazenda, da Administração e Reforma do Estado, e da Ciência e Tecnologia. Escreve a cada duas semanas, aos domingos, na versão impressa de "Mundo".
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário